“Decifra-me ou devoro-te”, ela sussurrava delicada e oblíqua, mostrando
vaidades que a idade não pôde apagar, muito pelo contrário, aqueles anos idos
sem mim, as marcas dos outros, faziam dela muito mais interessante e atraente.
O sol se apagava enquanto os prédios iam se ascendendo num espetáculo em
que o céu estava longe de ser palco. As ruas ganhavam uma luminura artificial
muito velada, mostravam-se sem se revelar, sugavam-me sem me tocar. Acabara de assistir a uma mulher
se aprontando para uma noite de gala. E eu de jeans.
“Decifra-me ou devoro-te”, ela sussurrava em apelo de boca pintada e o
olhos dissimulados. Parecia perigosa, talvez por tão inalcançável. E naquele
momento, mais do que nunca, eu a queria.
Os edifícios de outra época convidavam-me para um passeio no tempo e eu
passei horas me perdendo entre ruas de nomes impronunciáveis que davam em nada,
cruzando edifícios que traziam estátuas que eu não conseguia explicar. Uma mão
me dobrou em tamanho, criaturas desconhecidas me encararam, mulheres imponentes
e desnudas me ignoraram, homens virís me desafiaram.
“Decifra-me ou devoro-te”, ela sussurrava obscena, contorcendo-se, com
uma beleza impenetrável e obscura que eu previa a um passo de
desvelar. Mas os contornos eram furtivos, movediços. Topei com túneis em
penúmbra, calabouços. Eu a sentia escapando. Logo veio o sol, seu cúmplice e
amante ciumento para cobrí-la, escoltá-la de volta a outra época. Eu
havia sido condenado a viver em ignorância, sem nunca poder vê-la por inteiro,
tê-la por inteiro, absorvê-la por inteiro, compreendê-la por inteiro. Eu era mais um devorado pelos
contornos de Antuérpia.
O texto de hoje ganhou voz com o romeno Alin Chirculescu, historiador de arte e colaborador do site Art History Lab.
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